Por Shannya Lúcia de Lacerda Filgueira
“Eu penso, logo existo”
DESCARTES
“Mi alma tengo en las carnes”
DOM QUIXOTE
“Perder a aura significa ser corrompido”
BAUDELAIRE
Quando não sabemos explicar as nossas atitudes, pensamentos e sensações diante do mundo e, principalmente, diante de nós mesmos, o que fazer? Pois, se o penso, sinto e faço é devido a algo que nos movimenta interiormente; que nos faz autônomos de uma situação que talvez devesse ser dependente. É como se um outro ser adentrasse pelas veias e tomasse o lugar da bomba propulsora de meu peito sem que ao menos soubesse se era eu ou o outro eu a tecer as teias de meus segundos pródigos e inconstantes. E, se por ventura, esse outro eu de mim assume meu lugar deve ser devido a um espaço vazio, oco, que me falta seja por carência ou por fuga; o crucial é que Ele (s) está lá a realizar diversos intentos, porém estes, talvez se percam pelo caminho da jornada, por uma deficiência da vontade que escorre do cérebro à coluna de nossas vontades.
Como Cervantes bem coloca a alma é derivada do momento em que ela está em nossa pele justaposta a nossa nervura nos fazendo ser, e nos fazendo incompreendidos diante dos outros, seres semióticos de natureza complexa e solitária; e é por isso que a faceta mostrada é aquela cuja ainda não foi corrompida pelo momento, aquela que provou ser merecedora daquele instante.
As nossas diferentes versões, via de regra, são tão iguais, singulares e, no entanto às vezes tão diferentes tão adversas. No diálogo íntimo de nossas “Nevroses” cremos que somos loucos por concordar no que parece impossível e discordamos no mais inteligível e plausível das consonâncias. Sendo difícil descrever o dono de nossas ações e o caráter cujo há elementos psicossomáticos assomados a exterioridade das conjunturas sociais.
O que nossos eus inescrupulosos, resolutos e fantasiosos concebem, muitas vezes, não podem ser “paridos”, executados; pois, tornaram-se vagos delírios a dançar dormentes, mas latentes em nossos crânios. Então, explodem-se o gozo dos devaneios e se esvaziam o das ações; e tudo é só pensamento sem matéria, sem corpo, sem forma porquanto não vinga.
Quem de nós não duela por dentro? Quem não vê um outro ser: crescer como uma mácula, um câncer, uma forma estranha? Quantas vezes nos sentimos alienígenas por estarmos “como peixes fora d’água” com uma cortina não muito adequada? Prefiro crer que há quem assim se sinta quando se responde, por exemplo, rispidamente a alguém que sempre nos é tão dócil e afável. Ou então, quando precisamos ser delicados e, no entanto não somos nada, porque já fugiu de nós o poder da palavra quando na verdade você deveria ter respondido algo.
No entanto, esses sintomas são fatos consumados, são essências mortas de corpos vivos.
Quantas vezes não somos nós tomados por ânsias; tomados por vontades de nos emprestar? Emprestar meu corpo aos caprichos dos deuses postos em meu ventre, em minhas entranhas. Dar minha mente para essa ser palco de revoadas, de ciclones folheados de verde e torcidos na secura de minhas ações.
Assim, como Fernando Pessoa emprestava, dava e perdia tudo para os seus eus – pessoas de sua íntima convivência – quero desfazer-se de mim para em vulto dar-me a eles, fazer-me de tranças num cabelo enlinhado, em que não se saiba ao certo onde começa e termina um.
Por uma mania de infância hoje sou tido como louco por não saber dar vazão ou arreios aos meus. Pois, quando me distraio, acedo: quieto e manso. Porquanto não sou Pessoa, mas sou uma pessoa como outra qualquer que esconde e demonstra virtudes, vicissitudes; defeitos e desmazelos, inquietações do meu ser unívoco tripartido, ou será da tríade reunida num único lócus. Caeiro, Campos e Reis: mestres de Pessoa e da pessoa como modo de ser, modelagem dispersa e rejuntada; formas tão diferentes e iguais, cujo brincar gira em torno e ao sabor do quero mais.
Dessa forma Fernando Pessoa é a criatura mais complexa e simples e sentimental que há, pois emprestou a todos seus caracteres, quando na realidade não tem nenhum deles a compartilhar. Apenas, idealizou a maestria de “to be or not to be” (Hamlet, de William Shakespeare), simplesmente, por não ser e já sendo aquilo o que sonhou ser.
Nós, humanos, frutos de transpirações nas respirações constantes, camaleões dos ventos e das marés, ensejamos ver nos outros o que de nós não vemos. Espelhos do mundo, reflexo de tudo que ocorre nas entranhas e que se moldam face a lacuna apropriada e do eu que se escolhe (certo ou incerto) no interior de cada cidade, expiados pelas palavras que se fazem imagens nas janelas de nosso topo, alçadas ao topo das montanhas que conosco convivem e que nos parecem ilhas a se chegar a nado, se fazendo de anjos e demônios. Assim nossos eus treinados para o embate diário massacram e protegem o que a eles aprouver.
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