quarta-feira, 19 de maio de 2010

Resposta

– Já disse que não me peça
para escrever ou cantar flores,
porque não o farei. Deixá-la-ei
para os amantes do perfume,
das cores, ou sei lá de quê...


não faz meu verso ficar presa
no encantamento. Ora, não sou
serpente em cesto, tão pouco
me deteria à ralas fantasias.


Agora se eu utilizasse flores
para versar, com certeza, seria
para trazer sob o jugo
imagético das flores: o real
simbólico, as vicissitudes
e as semelhanças que uma
metalinguagem mo possibilitaria.


– Não insista! Já disse: não escrevo flores!


Shannya Lacerda

Natal, 19/ 05 de 2010.

sábado, 15 de maio de 2010

aos amigos ..........

Rabiscos e letras
Quando exaurir-se os miolos ocos do vento,
de qual assunto poético trataremos?
Quando o sol fechar-se ao amarelo rubro,
de qual prosa falaremos?
Quando o assunto murchar o burburinho
das falas ininterruptas, o que faremos?

Finalmente, devo dizer:
esculpiremos o vento,
pintaremos as falas
e arquitetaremos
o sonho translúcido
dos poetas e amigos
das letras...

Shannya Lacerda
Natal, 12/ 05 de 2010.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Seminário

O leão invisível devora
minha paciência.
Ruge bem alto, não atrai
minha consciência.
E quanto mais corre
menos me espanto.
Se me ataca, deixo-me morgado
ao ataque feroz;
não ateio à mente 
o fogo capaz de me mover.
Talvez esse leão me coma,
porque meu cérebro
com meia hora de rugido
já entra em profundo coma.

Shannya Lacerda

sábado, 8 de maio de 2010

Mãe, Presente de Deus


Para completar o homem,
Deus fez a mulher...
Mas para participar do milagre da vida,
Deus fez a Mãe.
Para liderar uma casa,
Deus fez a mulher...
mas para edificar um lar,
Deus fez a Mãe.
Para estudar, trabalhar e competir,
Deus fez a mulher...
Mas para guiar a criança insegura,
Deus fez a Mãe.
Para os desafios da sociedade,
Deus fez a mulher...
Mas para o amor, a ternura e o carinho,
Deus fez a Mãe.
Para fazer qualquer trabalho,
Deus fez a mulher...
Mas para embalar o berço
e construir um caráter,
Deus fez a Mãe.
Para ser princesa,
Deus fez a mulher...
Mas para ser Rainha
Deus fez a Mãe.

Autor: anônimo

O Zé dos Josés

E agora José?
Tu criastes tudo e muitos ainda te
tem intimamente como um Mané,
a quem todos recorrem, utilizando
a monossílaba, substantiva, adjetiva,
mitológica e impregnada de valores
pronunciados pelas duas letras de
som gritante: FÉ (?)

E agora José?
Botasses tantos Zés no mundo e a eles
não importa de fato quem tu és?

E agora José?
A precariedade acional de tuas ações
recaem no mito. Saber quem fez o
quê, é difícil e o autor é um tal de Zé.

E agora José?
Tua onipotência equivale no drama
a uma trama de análises, cabendo a tu
escutar e absolutamente nada cobrar.

E agora José?
Donde anda tua presença? Se na tua
ausência ninguém propaga a fé em ti!
Oh criador...!

E agora José?
De que te valeu ter criado, tu, tantos
falsos ateus?, se vives solitário e angustiado,
esperando pela próxima choraminguela, ou
até mesmo soluço íntimo a te chegar aos
labirintos de teu pensar.

É, julgar é difícil. E se erras és o culpado;
fostes um mané igual ao Zé, que por não
ter estudo, esbarrou no homem astuto
de terno e giz que nunca escreve o que diz.

E agora José?
O defunto a ti chegou, tu irás em tua
bondade salvá-lo. E ele irá novamente
valer-se disso, te chamando por trás
do olvido: “– foi zé quem me salvou!”

E séculos e mais séculos se passarão
e teu nome perpetuar-se-á cada vez
mais confundido com aquele Zé
ingênuo lá do sertão abatido.

SHANNYA LACERDA
Natal, 06/ 05 de 2010

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Fâmulo de mim

O que sou eu?
senão os outros
que em mim
se confundem;
num rubor que
me sobem às têmporas
e põem meu pulso
trêmulo,
fâmulo
das vontades que
do outro eu
de mim toma parte,
fazendo arte;
que toma por base:
os outros eus de mim.

Shannya Lacerda
Natal, 26 de junho de 2009.

NOTAS SOBRE O CONTORCIONISMO PLURAL DA PINTURA

Por Shannya Lúcia de Lacerda Filgueira

Impressões de cores que impregnam
o ar da vida simplória, transformando- o
em arte que inspira movimento dialético
entre os humanos através dos tempos em que resiste.

A pintura por excelência é o campo das experiências do homem com o figurativo que exprime de forma plástica sua percepção enquanto ser vivo com o ambiente e as transformações que o cerca. Assim sendo, nossa relação com essa arte é quase que essencial, uma vez que necessitamos, de uma forma ou de outra, expor nossa subjetividade emanada da angustiante objetividade com que tratamos nossa realidade, muitas vezes mesquinha e enfadonha. Devido à falta de sonhos com que somos obrigados a nos abster a pintura surge então como uma fuga ou autocrítica momentânea. Em outras palavras, no dia-a-dia nos privamos dos prazeres psíquicos dos sonhos que movimentam nossa realidade em troca de uma objetividade sem rumo, que nos acorrenta desde os primórdios, uma vez que sempre vivemos em sociedade; mudamos apenas de diferentes modelos políticos, mas sempre fomos vítimas do acolhimento social. Entretanto, faz-se fundamental vivermos assim. Pois, é no meio social que adquirimos experiências compartilhadas, que anestesiamos o sofrimento, que colorimos o mundo. Assim a pintura se sobrepõe a todo e qualquer ato de objetivo, sendo toda ela uma ruptura, uma quebra com a cor “monocromática” da realidade.
Isso posto é impossível dizer que a pintura européia suplantou nossas origens, uma vez que foi dessas origens que surgiu a pintura mesclada, melhorada, renovada e plurisignificativamente antropofágica.
A história da nossa pintura começa na pré-história com as pinturas hoje reconhecidas como rupestre, sendo ela nosso primeiro registro em “tela” de argila nas paredes das grutas ou cavernas. Logo em seguida, nossos irmãos indígenas se utilizavam das cores de tintas naturais para se pintarem casualmente ou fazerem dela a marcação de (dos) ritos. Hoje as pinturas marajoaras são muito atrativas e elogiadas por turistas daqui e os de fora.
Com as navegações marítimas nossas terras tupiniquins ao serem “descobertas” e colonizadas receberam uma vasta gama de viajantes, cuja bagagem além ter sido a da ganância, trouxe também cultura e ideologias políticas, sociais e de estética artística. No que diz respeito à validação regional étnica, aportaram em nosso litoral: portugueses, franceses, espanhóis e holandeses cristãos, os judeus – cristãos novos, ingleses protestantes, escravos africanos, entre os de outras etnias que vinham como marujos ou degradados. E isso acarretou nas “mutações” de nossa etnia comportamental e ideológica. Assim no tocante a nossa pintura, ela passou pelos motivos estéticos do renascimento, do barroco, do romantismo, do realismo, do modernismo, do surrealismo, do impressionismo e expressionismo, do abstracionismo, do concretismo, do neo concretismo, da nova figuração, pela arte conceitual de “pintura morta” dos anos 70, pela retomada dos temas feito na década de 80 e a pluricidade temática da atualidade que aborda a deformação das leituras de mundo, ou então pluraliza-se a singularidade artística, dando plasticidade às perceptivas significações.
Assim a nossa construção artística se desenvolve na caminhada feita pela arte da pintura através dos tempos, abordando variadas temáticas que se engendram na motivação devido a nossa linearidade política e social que sempre nos cativou e nos conduziu a rumos que a história expõe em forma de arte, luz, cores e sons.


        Síntese do trabalho apresentado à disciplina Metodologia Aplicada ao Ensino de Artes pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, durante o Curso de Graduação em Pedagogia.

Criança imolada

Ouve-se um choro longe,
um gemido alucinante,
é a navalha brilhante
que imola a jugular de um infante.

Após o jugo, o algoz em transe
bebe seu ardente sangue,
como das pequeninas partes
e brinca com o sexo ainda indisperto.

A criança coitada, imolada,
não é mais nada
que a lembrança pálida
de alguém que inocente,
fora sacrificada

desalmado humano, deixou
na vista do pai, o desengano;
no seio da mãe, um cancro;
e na sociedade, a mazela
da impunidade.


Shannya Lacerda
Natal, 07/ 05 de 2010.

Notas sobre a construção da memória e os contos de fadas

Por Shannya Lúcia de Lacerda Filgueira

Os textos são como cidades
e as palavras portas abertas pelo elo
mágico, o verborrágico mundo da parábola.
Shannya Lacerda

“As massas ainda comerão dos
biscoitos finos que eu produzo”.
Oswald de Andrade

O mundo dialético que povoam as histórias nos resistem com o passar do tempo graças ao efeito de despertar de mundo que suspira em cada infante; a cada década, século ou milênio em que a história e seu mundo fabuloso sobrevive, cujo significado é adaptado, transformado ou transfigurado de acordo com a mentalidade social que se apresenta como sujeito dominante do monopólio cultural e político conferido aos “juízes” de nossa “nau”.
Acontece apenas que a nossa literatura – a que corre sobre veias ocidentais – pauta-se numa corrente que sobreviveu por muito tempo via oralidade, como forma de passar conhecimento científico e doutrinação comportamental através de uma psicologia galgada em modelos castrativos e fâmulos. Retrocedendo na história encontramos essa comoção literária desde nossos irmãos rudimentares e primitivos até a mais conhecida história de Nosso Senhor Jesus Cristo e sua “tropa de pregadores parabólicos”. No entanto, somente, no século XVII é que se houve uma preocupação no sentido de recuperar toda uma tradição cultural oral de histórias, que a princípio não eram destinadas ao público infantil, uma vez que ainda não se existia o conceito infância. Tendo a coletânea como nome Histórias ou contos do tempo antigo ou Contos da mãe gansa e seu pesquisador ou organizador Charles Perrault (1628 - 1703), contemporâneo de grandes pensadores como La Fontaine (fabulista), Molière (literata) e Racine (literata).
Somente com a subida da classe social burguesa “plena” no poder durante o século XIX é que criou-se uma mentalidade voltada para a separação conceitual de infância e adulto, e tantos outros termos, hoje, banais à nossa audição. Despontam então Hans Christian Andersen (1805 - 1875) na Inglaterra e os Irmãos Grimm (Jacob 1875- 1863/ Wilhelm 1786 - 1859) na Alemanha; fazendo um trabalho similar ao de Perrault na França. E de lá para cá o que ocorreram foram sucessivas transformações no modo de contar ou de passar o enfoque desejado, de modo que até hoje os contos sobrevivem resguardando o universo diabólico ou açucarado dos contos de fadas.
Paralelamente a história da literatura percorrida pelos contos de fadas temos as fábulas que surgiram, pelo menos que se tenha notícia, como grandes nomes nesse gênero literário na Grécia e em Roma por meio de escravos – pedagogos – como forma de se educar os filhos de seus senhores de cativeiro. Pois, sua pretensão era passar uma moral que dificilmente se abalaria na prática, mas que serviam de tema “lúdico” (*essa palavra é de teor e significado moderno) para educar e promover a elaboração do conhecimento cognitivo. Assim sendo temos Esopo na Grécia e Fedro em Roma. Passando-se os séculos encontramos como referencial de aporte teórico as fábulas de La Fontaine, francês seguidor do universo fabulista de Esopo.

Isto posto, já deve ser de se supor a importância de se trabalhar com as artes literárias “sobreviventes de guerra” para que essa cultura não morra em nossas mentes “empoeiradas e carcomidas pela história que acaba por varrer as lembranças de nossa frágil e débil caixa de recordações”. Pois, “... a velhice é febre lenta com senis caprichos” (Fausto de Goethe). Entretanto “os mortos persistem nos vivos” (Conte) quando imortalizamos a cadeia reprodutiva das histórias infantis e juvenis provenientes de um amadurecimento cultural e histórico para a raça humana.
Logo, para qualquer educador é muitíssimo gratificante recordar o teor de produtividade elaborada ao longo de nosso percurso aqui no planeta azul; além de poder utilizar essa produção para eternizar o terreno imaginário nas massas cinzentas de nossas sofridas e automáticas crianças (adultas e tristemente adulteras). Participando não de uma construção infantilizada, mas autônoma de seu sujeito infantil, delegando idoneidade a todas e a todos que queiram expor-se a um universo mágico deturpador da realidade tão real em sua irrealidade.

Percurso do trovador e do Trovadoresco

Ao poeta Ademar Macedo

Nasceu o trovador.
Ele cresceu e germinou
a mensagem poética
por todo o caminho
que trilhou...

Com o tempo teve a ideia:
lançar as trovas ao mar!
Deu no que deu... então
assim o Trovadoresco nasceu ;
encantou o paladar
pitoresco e recriou
o arteiro cantar trovador,
que por cinco anos
vem arrancando sorrisos,
gargalhadas, choros e socos
no amor, na vida e no pudor.

Seja como for... o autor
pode já se dar por satisfeito
por há cinco anos fazer,
o que vem fazendo!

Parabéns meu trovador carnavalesco!!!


Shannya Lacerda

FILHOTE FÂMULO: CRIAÇÃO DEVANEÍSTA

Por Shannya Lúcia de Lacerda Filgueira


“Eu penso, logo existo”
DESCARTES

“Mi alma tengo en las carnes”
DOM QUIXOTE

“Perder a aura significa ser corrompido”
BAUDELAIRE

        Quando não sabemos explicar as nossas atitudes, pensamentos e sensações diante do mundo e, principalmente, diante de nós mesmos, o que fazer? Pois, se o penso, sinto e faço é devido a algo que nos movimenta interiormente; que nos faz autônomos de uma situação que talvez devesse ser dependente. É como se um outro ser adentrasse pelas veias e tomasse o lugar da bomba propulsora de meu peito sem que ao menos soubesse se era eu ou o outro eu a tecer as teias de meus segundos pródigos e inconstantes. E, se por ventura, esse outro eu de mim assume meu lugar deve ser devido a um espaço vazio, oco, que me falta seja por carência ou por fuga; o crucial é que Ele (s) está lá a realizar diversos intentos, porém estes, talvez se percam pelo caminho da jornada, por uma deficiência da vontade que escorre do cérebro à coluna de nossas vontades.
         Como Cervantes bem coloca a alma é derivada do momento em que ela está em nossa pele justaposta a nossa nervura nos fazendo ser, e nos fazendo incompreendidos diante dos outros, seres semióticos de natureza complexa e solitária; e é por isso que a faceta mostrada é aquela cuja ainda não foi corrompida pelo momento, aquela que provou ser merecedora daquele instante.
         As nossas diferentes versões, via de regra, são tão iguais, singulares e, no entanto às vezes tão diferentes tão adversas. No diálogo íntimo de nossas “Nevroses” cremos que somos loucos por concordar no que parece impossível e discordamos no mais inteligível e plausível das consonâncias. Sendo difícil descrever o dono de nossas ações e o caráter cujo há elementos psicossomáticos assomados a exterioridade das conjunturas sociais.
         O que nossos eus inescrupulosos, resolutos e fantasiosos concebem, muitas vezes, não podem ser “paridos”, executados; pois, tornaram-se vagos delírios a dançar dormentes, mas latentes em nossos crânios. Então, explodem-se o gozo dos devaneios e se esvaziam o das ações; e tudo é só pensamento sem matéria, sem corpo, sem forma porquanto não vinga.
         Quem de nós não duela por dentro? Quem não vê um outro ser: crescer como uma mácula, um câncer, uma forma estranha? Quantas vezes nos sentimos alienígenas por estarmos “como peixes fora d’água” com uma cortina não muito adequada? Prefiro crer que há quem assim se sinta quando se responde, por exemplo, rispidamente a alguém que sempre nos é tão dócil e afável. Ou então, quando precisamos ser delicados e, no entanto não somos nada, porque já fugiu de nós o poder da palavra quando na verdade você deveria ter respondido algo.
         No entanto, esses sintomas são fatos consumados, são essências mortas de corpos vivos.
         Quantas vezes não somos nós tomados por ânsias; tomados por vontades de nos emprestar? Emprestar meu corpo aos caprichos dos deuses postos em meu ventre, em minhas entranhas. Dar minha mente para essa ser palco de revoadas, de ciclones folheados de verde e torcidos na secura de minhas ações.
          Assim, como Fernando Pessoa emprestava, dava e perdia tudo para os seus eus – pessoas de sua íntima convivência – quero desfazer-se de mim para em vulto dar-me a eles, fazer-me de tranças num cabelo enlinhado, em que não se saiba ao certo onde começa e termina um.
         Por uma mania de infância hoje sou tido como louco por não saber dar vazão ou arreios aos meus. Pois, quando me distraio, acedo: quieto e manso. Porquanto não sou Pessoa, mas sou uma pessoa como outra qualquer que esconde e demonstra virtudes, vicissitudes; defeitos e desmazelos, inquietações do meu ser unívoco tripartido, ou será da tríade reunida num único lócus. Caeiro, Campos e Reis: mestres de Pessoa e da pessoa como modo de ser, modelagem dispersa e rejuntada; formas tão diferentes e iguais, cujo brincar gira em torno e ao sabor do quero mais.
          Dessa forma Fernando Pessoa é a criatura mais complexa e simples e sentimental que há, pois emprestou a todos seus caracteres, quando na realidade não tem nenhum deles a compartilhar. Apenas, idealizou a maestria de “to be or not to be” (Hamlet, de William Shakespeare), simplesmente, por não ser e já sendo aquilo o que sonhou ser.
          Nós, humanos, frutos de transpirações nas respirações constantes, camaleões dos ventos e das marés, ensejamos ver nos outros o que de nós não vemos. Espelhos do mundo, reflexo de tudo que ocorre nas entranhas e que se moldam face a lacuna apropriada e do eu que se escolhe (certo ou incerto) no interior de cada cidade, expiados pelas palavras que se fazem imagens nas janelas de nosso topo, alçadas ao topo das montanhas que conosco convivem e que nos parecem ilhas a se chegar a nado, se fazendo de anjos e demônios. Assim nossos eus treinados para o embate diário massacram e protegem o que a eles aprouver.

Carta ao poeta

Lisboa, 20 de junho de 1930.
Ao Sr. Álvaro de Campos,

Bem, primeiramente, Sr. Campos queria dizer-te que fico feliz pelo Sr. ter em mim tão grande consideração, pois mandar-me um de seus poemas para que eu o análise, ficando como consequência a minha mercê. Assim, como Odisseu ficou ao dos deuses.
Entretanto, meu caro, noto no seu poema, Bicarbonato de Sódio, certo tom bucólico, como a um gás disperso no ar, além de uma apatia condensada sobre exclamações, anaforismos e interjeições. Meu colega Campos, o que houve com suas obras antes tão viris e agora, pelo jeito, tão apáticas? Afundaste-as numa morgadez de infindáveis vazios. Que será essa azia tua diante das perguntas que apenas se constroem em ocas mentes? Que será essa tua desilusão diante da liberdade? O que te aflige?
Talvez eu nunca saiba. Contudo, o propósito dessa minha carta de resposta ao seu poema é para te dizer que procure o vazio, para que esse possa ser completo, procure na natureza, nas pessoas, na vida um parafuso à sua desconsolada porca. Siga ou imite meu mestre Alberto Caeiro e dê um sentido a sua imensidão. Pare de imitar ou de ser como aqueles poetas bobos e vá ser ou procurar ser o regador de teu íntimo para que nesse areal possa brotar, pelo menos, um lírio ou algo silvestre que te acalente o espírito. Esqueça o “verão” dos outros e cuide de teu próprio inverno.
Espero que compreendas as minhas palavras e encontres em mim um amigo leal e sincero.

Atenciosamente,
Ricardo Reis.

DOIS OU NENHUM

Por Shannya Lúcia de Lacerda Filgueira

Dois ou nenhum: essas são as únicas alternativas que se impõem às crianças órfãs quando não encontram pais heterossexuais que as queiram.
A adoção por casais homoafetivos torna-se, então, uma opção mais convidativa que passar a vida toda à margem da estrutura social primeira e, também, a mais simples delas, a família.
Bate-se muito na “tecla” de que esta adoção é inviável por vários motivos, mas nenhum é tão forte quanto o argumento de que a criança nesse tipo de adoção enfrenta vários problemas relacionados ao preconceito ainda instalado no seio da sociedade. Isso traz ao menor de idade comprometimentos em sua formação psicológica, social e, algumas vezes, corporal - quando casos de bullying (comumente entendida como uma violência psicológica que ocorre entre adolescentes sendo essa praticada de forma repetida e tirânica) chegam a extremos.
Entretanto, é bom ver a adoção como algo benéfico que dá ao menor aquilo que lhe foi tirado, negado, anteriormente. Creio, portanto, que a afirmação feita por alguns membros de nossa sociedade de que pais homossexuais, não constituintes de um estereótipo familiar convencional, sejam incapazes de amar e de cuidar de uma criança configura-se muito mais como uma justificativa ao preconceito ou ao tabu há muito instaurado; não da e para a criança, mas para com seus, possíveis, pais que ainda não estão de todo livres do preconceito acerca de sua opção sexual e de seus modos de vida.
Contudo, é bom lembrar que é bom ter um lar acolhedor, uma cama quentinha e mamães e papais afetuosos que estão prontos a dar carinho, atenção, respeito e, principalmente, amor. Só por que eles vêm em “dose dupla” em um único sexo que não os diminui, muito menos reduz suas capacidades e a vontade de propiciar um futuro a uma criança, que está à espera, muitas vezes, de um milagre. Sendo, justamente, por não terem tido uma família que lhes ensinasse respeito e limites tão essenciais à vida em sociedade que esses pequenos seres poderão se tornar mais um (a) marginalizado (a) entre tantos que por aí já se encontram.
Seja como for, a adoção é um ato de amor. E quando há amor se supera tudo, inclusive discriminações e preconceitos injustificáveis que só impedem a felicidade e, neste caso, somente trazem consternação em vez de alegria e paz.

A pálida luz da manhã de inverno


A pálida luz da manhã de inverno,
O cais e a razão
Não dão mais 'sperança, nem menos 'sperança sequer,
Ao meu coração.
O que tem que ser
Será, quer eu queira que seja ou que não.
No rumor do cais, no bulício do rio
Na rua a acordar
Não há mais sossego, nem menos sossego sequer,
Para o meu 'sperar.
O que tem que não ser
Algures será, se o pensei; tudo mais é sonhar.

Fernando Pessoa
Fonte: http://www.secrel.com.br/jpoesia/fpesso.html